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Número de Ondas

sexta-feira, 12 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (87)


Expectativa e surpresa

A rotina, ao contrário do que defendem alguns idealistas, é (ou pode ser) um espaço de felicidade, oferecendo-nos um dos mais belos, embora prosaicos, rostos da maiúscula Paz – a segurança. Mas é-nos indispensável também, convenhamos, a expectativa de uma surpresa que nos salve da repetição bruta e cínica. Consola sabermos que o Sol voltará depois do ocaso, e que a noite interromperá, em (e por) tempo oportuno, o ruído fatigante da selva por onde andamos de dia. Sorrimos à probabilidade de vermos rostos conhecidos nos lugares habituais; de ouvirmos as vozes que é costume ouvirmos; de testemunharmos o funcionamento regular da vida antes de falir. Mas secretamente esperamos que uma qualquer novidade alienígena venha colorir esta amável pasmaceira das horas, seja na forma de um rosto tão lindo que não podia ser verdade, seja na qualidade de um telefonema, carta (ou email) de gente amada, seja ainda como abraço vosso, ou livro do Ondjaki, ou canção do Salvador Sobral, ou golo do Cristiano Ronaldo.
(A ideia do golo mete-se-me na escrita, mas a aparição dá-me jeito.)
Acordamos para a vida como quem se prepara para ir a um campo de futebol, com a ideia de assistirmos a um jogo do nosso clube. Tudo é, na base, repetição, rotina, protocolo: estacionar o carro, comprar o bilhete, esperar na fila, com as outras formigas, pela revista das forças de segurança, procurar o nosso lugar, aplaudir o anúncio da equipa titular, sorrir ao nome do árbitro (que já nos prejudicou milhões de vezes). Depois, começa a partida – e tudo é movediço e etéreo como alguns sonhos: sobre um chão de regras, de tácticas e de estratégias, vemos numerosíssimas danças mais acontecidas que ensaiadas, falhanços impossíveis (inadmissíveis), ressaltos de sorte & azar, glórias anunciadas ou improváveis, pesadelos adamastores, gritos, cânticos, palavrões, desassossego, dúvida, esperança, medo que já não haja tempo para um final feliz.
A boa literatura tem muito desta mesma mistura, seja qual for o modo por que viajemos: nos bons romances e nos bons dramas, a sistemática repetição de gestos e eventos dá-nos a ilusão do tempo a passar (tempo realista, verosímil, político, isto é, tempo percebido-sentido na nossa pele, com rugas e tudo) - e depois há, por exemplo, a surpresa de um amor impossível que, por milagre, se afigura possível, e que depois, como temíamos (temêramos) falece tragicamente. Na poesia, por entre frases denotativas e simples, refulgem versos originais e provocatórios que nos mudam, para sempre, a linguagem e a própria vida, ou sons que, partindo da normalidade comezinha, desaguam subitamente em rimas, assonâncias, aliterações, música (dita-ouvida-pensada).
O meu dia começa com o toque do alarme para despertar. Levanto-me. Abro a janela e peço instruções à paisagem para a roupa (muita ou pouca) a usar. Tomo 50 mg de Losartan para a tensão. Faço a barba, lavo os dentes, tomo banho, visto-me. Se o relógio me autorizar, ainda bebo uma chávena de café e engulo um pão com manteiga. Beijo a mulher. Desço a escada, ponho o carro a trabalhar, ligo o rádio, viajo. Na escola, cumprimento os contemporâneos habituais da minha sorte e começo a trabalhar. No meio desta virtuosa rotina, hão-de acontecer-me, sei-o bem, coisas extraordinárias. Talvez versos (lidos, escritos, quiçá testemunhados em seu estado de pré-literatura). E, caros amigos, como poderia eu (como poderíamos nós) viver sem esta expectativa?

Coimbra, 06 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 11-05-2017.]

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