Num dos seus grandes romances, Aparição, Vergílio Ferreira relata um episódio cheio de uma religiosidade estética que para sempre me impressionou: uma menina (Cristina) toca piano de forma tão bela que Alberto Soares, a personagem principal da narrativa, voa para fora de si próprio e, por instantes, parece atingir o Absoluto.
Num ensaio sobre a ideia de clássico, o escritor sul-africano (nobelizado) J. M. Coetzee fala do seu encontro com Bach, num improvável contexto de ruralidade e simplicidade tropicais, desse modo provando, com base em sua própria experiência, a natureza mágica, transtemporal e universal da arte (neste caso, da música).
Aconteceu comigo, aí por Março do corrente ano, enquanto tardiamente jantava, ouvir cantar, na televisão, um moço de aspecto estranho. Sobre o meu sofá (sobre o meu prédio, sobre Ribeira de Pena) caiu um manto de inefabilíssima beleza. Aos gritos, chamei a minha mulher, ocupada a corrigir testes de Português, e pedi-lhe que comigo testemunhasse o que ali se passava. E ela sucumbiu, como eu, ao encanto que vos digo. O rapaz, soubemos depois, chamava-se Salvador Sobral e a canção, “Amar pelos dois” (letra e música de Luísa Sobral, irmã do cantor). O programa que passava era o Festival RTP da Canção, primeira eliminatória. E nós, que há mais de vinte anos ignorávamos ostensivamente este concurso tão cada vez mais pimba, ficámos, desde logo, a torcer pelo apuramento daquele concorrente. Um júri formado por gente da música e do espectáculo deu-lhe, por unanimidade, o 1.º lugar. Mas o sistema de votação, como a seguir percebemos, também implicava votos telefónicos da turba espectadora – de modo que “Amar pelos dois” ficou, salvo erro, na 4ª posição (ainda assim apurado para a final).
Na minha Escola, para além deste vosso cronista, o maior entusiasta da canção foi o professor de Música. No geral, notei só indiferença ou menosprezo. Veio a final e Salvador Sobral voltou a convencer o júri, apesar de obter apenas um 2.º lugar no televoto. Contas feitas, foi declarado vencedor e eleito representante da RTP no Festival da Eurovisão, em Kiev (Ucrânia). Eu estava, na altura, a borrifar-me para o Eurofestival, juro. Mas atrevi-me a, nesse mês de Março, fazer um pequeno comentário no Facebook sobre o tema escrito pela Luísa Sobral. Online e ao vivo, entre agradáveis cumplicidades, soube igualmente de uma espécie de desprezo, ora pedante, ora bruto, à volta da canção. As opiniões mais patuscas (para ser simpático) diziam que “aquilo não era nada”, que seria “mais uma vergonha para Portugal lá fora”. E eu bem tentava responder-lhes que isso dos votos não me interessava coisa alguma, que apenas me parecia profundamente bonita a canção, que o Salvador Sobral era um grande intérprete, que eu nem sequer estava interessado em telever o Festival.
Entretanto, segundo li depois, as “bolsas de apostas” começaram a falar do – surpreendente – favoritismo da canção portuguesa. Músicos consagrados (incluindo, por exemplo, o senhor Caetano Veloso) confessaram-se encantados com “Amar pelos dois”. Notei, então, online e in vivo no Café diário, um certo incómodo da parte dos “especialistas” em eurofestivais, que temiam estar errados. Lá admitiam que talvez fosse bonita a melodia, sim, mas – acrescentavam – “não era para festivais”.
Finalmente, sucedeu que o Salvador Sobral e a irmã convenceram alguns milhões de ouvintes/telespectadores: aconteceu-lhes, creio, o mesmo que a mim e à minha mulher naquela noite de Março, quando a Beleza desceu sobre Trás-os-Montes e nos fez reféns (gratos) daquela melodia e daquela voz.
Não assisti em directo ao concurso (estava em Vila Real a ver o meu Sporting perder com o Feirense). Mas a minha Filha, via telefone, foi-nos relatando, no regresso a Ribeira de Pena, o que ia sucedendo. E o que os três nos rimos quando soubemos da irónica conclusão disto tudo: a tal canção que, por muito bonita que fosse, “não era para festivais”, tinha ganho!
O que veio depois já é do domínio lamentável da pimbalhada mediática (só faltou dizer-se que o Salvador era o quarto pastorinho de Fátima). Eu não sou fã do rebanho patrioteiro que foi para o aeroporto cantar o hino de Portugal, e muito desconfio que o Salvador Sobral também não. Talvez, até, se o adivinhasse, ele houvesse optado por recusar o convite da irmã e preferisse ficar descansado a cantar o seu jazz (a propósito: ouçam Excuse me, o primeiro álbum do rapaz – e deliciem-se).
Sumário de quanto vos queria dizer: nasceu uma formosíssima canção, “Amar pelos dois” (que confirma o talento da Luísa Sobral) e revelou-se-nos um extraordinário cantor (e músico), Salvador Sobral. Desejo aos dois irmãos, da varanda d’O Ribatejo e do meu coração, muitas felicidades para as suas carreiras. Por eles e por mim, que gosto de música e de arte em geral.
Vila Real, 15 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 18-05-2017. Na versão digital do jornal, o texto é exactamente o mesmo; na versão em papel, por razões gráficas, os primeiros dois parágrafos não aparecem. A foto (com Salvador Sobral e Luísa Sobral) foi colhida - com a devida vénia - em http://www.flash.pt.]
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