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Número de Ondas

domingo, 28 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (89)


Uma fraude chamada ensino vocacional

O tema cai-me nos braços durante uma conversa, em Coimbra, à hora do café domingueiro, num centro comercial que serve de espreguiçadeira à pequena burguesia do meu contexto. Certa colega queixa-se, chorando, das grosserias (impublicáveis) de alunos de um curso vocacional. À notícia da violência, o seu director, diz-me ela, agiu de imediato, como lhe competia: falou com a turma, lembrou-lhes os direitos e os deveres dos alunos, ameaçou-os com punições e, enfim, incentivou-os a melhorar o comportamento em nome do sucesso escolar e da cidadania. Entre parênteses, introduziu uma nota sentimental, referindo o estado sofrido e frágil da docente queixosa, em lágrimas no seu gabinete. No dia seguinte, conta a colega, o inferno regressou: foi recebida com cantilenas jocosas, em que a palavra “chorona” aparecia como mote, refrão & voltas, entre gargalhadas e paródias de carpidação. 
O ensino vocacional, de que o auto-incensado ex-ministro Crato se ufanava – e serodiamente se ufana – é, em Portugal, uma quase absoluta fraude. Alunos com insucesso recorrente, por motivos que vão de incapacidades várias e respeitáveis à mais pura preguiça, e que se movem, regra geral, num quadro de clara desmotivação, são conduzidos para cursos vocacionais de cariz diverso – informática, agricultura, jardinagem, etc. Na prática, os piores alunos da Escola, quer do ponto de vista do rendimento, quer do ponto de vista do comportamento, juntam-se em grupos potencialmente (corrijo: fatalmente) explosivos, e “estudam”, em disciplinas consideradas fundamentais, o mesmo que os alunos do ensino regular/tradicional: em Português, Cesário Verde, Eça de Queirós, Garrett, Saramago; em Matemática, Álgebra, Geometria, e por aí adiante.
Fechados nas salas de aula, como antes, sujeitos ao mesmo tipo de ensino em que sobejamente se mostraram insusceptíveis de adaptação – eles reagem de forma impaciente, depois incorrecta, depois agressiva e grosseira. Tacitamente percebem que o sistema pretende oferecer-lhes, para sua (do sistema) própria sobrevivência, o diploma, pelo que pouco ou nada têm a perder com as atitudes menos adequadas que adoptam. Para piorar o panorama, sucede que a reunião de alunos problemáticos num mesmo grupo/turma tende (é dos livros) a potenciar os comportamentos disruptivos, a marginalidade, o puro Mal.
As vítimas, para além dos próprios discentes (condenados a ser, naqueles contextos tipificados, os vilões ou fracassados da Escola) são sobretudo os professores. Sei do que falo: não é só o penoso quotidiano de enfrentar as feras cinco, seis ou sete horas por semana (sujeitos ao enxovalho repetido, à desautorização, à vil rudeza e, em alguns casos, à agressão verbal ou física) – é ainda a miserável depressão em que mergulham, vivendo-vegetando tristemente, contando as aulas que faltam para acabar o pesadelo. Os alunos podem faltar, não fazer os seus módulos, manifestar todo o desprezo e nojo que lhes suscitam a matéria e o docente, mas é o professor que, em consequência, tem de compensar as aulas que as majestades discentes perderam, e de elaborar novas provas que finalmente aprovem (como é suposto/obrigatório) os “estudantes” relapsos.
Se o ensino vocacional não fosse a anedota que é em Portugal, estes alunos teriam aulas diferentes, em espaços diferentes, com matérias diferentes. A colega de Coimbra diz-me que já desistiu de fazer participações disciplinares (“Não lhes acontece nada e ainda acabam por gozar comigo ou por me ameaçar…”), de solicitar aos alunos que desliguem os telemóveis e não durmam nas mesas, de ordenar que não usem palavrões na aula, de pedir que se virem para a frente (“Para olhar para si?! Ainda se fosse nova e boa!”). Chora, pois, em silêncio, sobretudo em casa. Agarra-se aos seus alunos do 8.º ano (que são “educados, correctos, normais e querem mesmo aprender coisas”) por eles a fazerem sentir-se, ainda, um bocadinho professora. E risca no calendário as aulas que vai cumprindo no curso vocacional, como (diz-se) fazem os prisioneiros ou degredados de longa duração.
O Doutor Crato que limpe as mãos ao que, para glória fátua do seu umbigo fátuo, inventou.

Vila Real, 20 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, ed. de 25-05-2017.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Tive um «cheirinho» do que falas quando tive (ainda antes do ministério Crato) aí no Arco uma turma de PCA - Percurso Curricular Alternativo. Era isso tudo em potência, apenas moderado pela relativamente tenra idade dos miúdos e pelo facto de, sendo a escola pequena, nos conhecermos todos. Foi uma experiência de má memória, mas bem «soft» quando comparada com as que outros colegas têm experienciado - tu incluído. Percursos alternativos, cursos vocacionais, etc., tudo o que tenha esse tipo de destinatários e objectivos, tem que ser realmente diferente. Darem a esses alunos umas horas por semana de actividades práticas que muitas vezes nem sequer são do seu agrado, a mesma dose (mínima) de Educação Física, e o resto do horário sentados a «aprender» matérias como quaisquer outros estudantes, é uma aberração. Em troca da frustração de afinal terem mais do mesmo, sabendo-se um grupo mal-amado de fracassados, oferecem-lhes completamente à borla o grau académico sem exigir deles nada que não seja picar o ponto. Para haver hipóteses de resultar, tudo teria que ser radicalmente diferente, muito mais flexível e personalizado, e não numa lógica de disciplinas e de mimetização do currículo normal. Os decisores não conseguem libertar-se nem nos libertam da tirania das metas e dos perfis de saída. Enquanto eles se comprazem com as suas brilhantes teses e diagramas, entretidos com a realidade virtual, nós cá estamos para ser carne para canhão. Não está certo, e vai sendo tempo de colocar(mos) estas questões na agenda social, política e mediática.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo, completamente sintonizado com o que escreves. E, agora que penso nisso, faltou-me usar uma palavra a que recorres para descrever, com precisão clínica, o panorama: "aberração". Ora, contra a aberração, a berração (como berreiro), naturellement!

Abraço.

JJC