Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 27 de junho de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (93)


A Beleza, depois o Inferno, depois Nada

Eu tinha escrito uma crónica leve-levezinha, que falava da Primavera e do poder lenitivo das lembranças mais lindas. Faltava só dactilografá-la (ou, como agora se diz, digitá-la) e remetê-la ao nosso jornal. Mas sucedeu, entretanto, o Inferno. Notícias em tudo semelhantes às piores das guerras, ou aos piores dos atentados terroristas caíram sobre Portugal. Sobre nós.
Conheço razoavelmente a região por onde o Diabo em forma de fogo tem andado a matar. Trabalhei, há muitos anos, em Figueiró dos Vinhos, e lembro-me da beleza que, nas viagens de e para Coimbra, nos rodeava, daquele cenário (serpenteante) de árvores, montanhas, casinhas pitorescas aqui e ali.
Confirmou-se que a beleza pode ser perigosa. Aquela tão formosa proximidade das árvores, para os automobilistas que circulam no País profundo, era (é), afinal, uma ratoeira. A mesma, aliás, que há naquelas casas (ou povoações) vizinhas da floresta, sujeitas à destruição cúmplice de que qualquer incêndio filho-da-puta é capaz.
Estamos, felizmente, pouco habituados a este sofrimento hiperbólico: 63 mortos (talvez mais), quase uma centena de feridos, animais dizimados, casas e carros reduzidos a cinzas, muitos quilómetros de árvores devindas nada. Nos outros dias, a televisão, a rádio e os jornais atiram-nos para cima com um acidente rodoviário, um afogamento em praia não vigiada, um crime doméstico, uma facada traiçoeira durante um roubo – e, à força de repetida, a desgraça traz consigo um não sei quê de anestesia. Mas isto a que agora fomos sujeitos é indiscutivelmente maior, pior: a meados de Junho, a maiúscula Morte visitou Portugal, sem convite nem cerimónia. Deixou-nos este amaríssimo sabor da impotência mais triste, mais desconcertada, mais patética.
Deixo para quem sabe (e parece que há muitos) a discussão sobre o ordenamento florestal, a formação dos bombeiros, a articulação entre as organizações responsáveis pelo socorro às vítimas, os meios postos à disposição dos soldados da Paz, a educação ambiental das populações, etc. Por mim, não sou capaz senão de chorar, na forma singela de uma crónica de 2.128 caracteres. De me juntar aos que, na sua frágil condição de formiguinhas sobreviventes (por enquanto) ao Inferno, lamentam os mortos. E de, na medida das minhas possibilidades, ajudar os que mais directamente sofreram a violência daquele fim-de-semana, daquele fim-do-mundo. Com água, com leite, com dinheiro. E, vá lá, com palavras.

Vila Real, 19 de Junho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 22-06-2017. A imagem utilizada foi colhida, com a devida vénia, no site da TVI24.]

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