Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 1 de julho de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (94)











Recordações do Sol

Fui espectador (distraído) de um debate recente sobre os problemas do ensino superior. Confesso-vos: o maior de todos, visto o fenómeno das profundezas do meu egoísmo, foi (é) a minha Filha ter saído de casa para estudar em Coimbra.
Tenho para sempre na memória aquele rosto à janela rodoviária dizendo-nos adeus, e o nosso desespero sorridente retribuindo o gesto, enquanto a camioneta se afastava. Como náufragos, órfãos da “menina”, voltámos a casa, pressentindo que a vida não mais seria a mesma.
Passou a estar demasiadamente arrumado e quieto o quarto da nossa Filha. E foi por esse tempo que, na parede exterior da divisão vaga, um casal de andorinhas fez o seu ninho. Apressei-me a fotografar a novidade e a enviar as imagens para a dona dos aposentos. Ela própria, ao fim-de-semana, se encantou com a escolha das aves e participou comigo na exegese possível desse tácito poema.
Agora, a nossa “menina” é já uma senhora e tem a sua vida muito fora do radar progenitor. Licenciou-se. Trabalhou em Coimbra, no Porto, em Lisboa. Tem conta bancária, despesas, prazos, cumplicidades & adversidades só dela, mundo próprio. Nós, ora discretamente, ora de forma desajeitada, obrigamo-la a dizer se está tudo bem, se já jantou, se já foi ao médico, se já fez as pazes com sabemos lá quem, se precisa de ajuda. Só adormecemos depois da certeza de ela estar bem, como há vinte e tantos anos, quando vínhamos do hospital pedriático, cheios de angústia e medicamentos para uma gastroenterite infantil.
Quando coincidimos em casa, num Sábado qualquer, sinto uma quase indizível sensação de completude cósmica, como se, por horas, tudo-mesmo-tudo estivesse certo.
Aprecio agora, ainda mais, o regresso das andorinhas. Elas trazem no bico as primeiras sílabas da Primavera e, sem cerimónia, ocupam o seu lugar na nossa casa.
O problema de sofrermos desta doença chamada poesia está em antecipadamente sabermos que partirão, que o ninho vivo volverá a ninho vazio. Ora, quando as aves anunciadoras do Sol se afastam do lugar de onde as vemos-vimos o que fica? Resposta: o tê-las visto; o tê-las tido connosco enquanto foi possível. Não há, senhores, outra eternidade.
Já (me) tinha explicado esta estima e esta gratidão pela memória, há uns anos, nuns versos que compus para uma sessão (escolar) de poesia e teatro. Recordo-vo-los:

Deixa lá, não fiques triste:
O voo que já não vês
Pode ser voo outra vez
Se te lembrares do que viste.

Coimbra, 24 de Junho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Fotos JJC - Ribeira de Pena, 06 de Junho de 2017.]

2 comentários:

Paulo PInto disse...

Como te compreendo... E ainda hei-de compreender melhor, não tarda muito. Um abraço solidário!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo, sei que compreendes. Habitamos a mesma cidade da Vida - a CUMPLIcidade. Abraço! JJC