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terça-feira, 1 de agosto de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (98)











Sobre um romance em estado de sonho

A noção de que estamos perante uma grande narrativa não resulta exclusivamente de uma avaliação racional. A própria natureza estética do fenómeno implica, à partida, uma dimensão emocional, frequentemente misteriosa e desconcertante. Tenho notado que, até para falar da beleza de um certo texto (ou de uma pintura, ou de uma música, ou de um filme), tendemos a convocar, para o nosso testemunho de admiração, certa linguagem poética, com recurso - talvez involuntário - a adjectivação expressiva, a comparações e metáforas incendiárias, a hipérboles que alcancem, pelo instrumental exagero, a exactidão apetecida.
Um leitor experimentado, coleccionador de romances magistrais, acaba por aperceber-se de um conjunto de características que, regra geral, estão presentes em cada livro amado. O problema, quando o leitor é também, por vocação ou ambição, escritor, está em contar as suas próprias histórias concedendo-lhes o brilho genial das obras maiores. Ainda que conheça uma espécie de receita para a escrita a haver, confirma depois, melancolicamente, que a grande literatura não resulta de preceitos ou processos industriais. De certa forma, como disse Sebastião da Gama ao falar de aulas, a coisa acontece.
Habituei-me à ideia de que os romances maiores têm de comum a edificação de um mui coerente mundo, semelhante ou não ao da nossa realidade comezinha. Este mundo funciona com regras – e cria nos leitores a ilusão da vida verdadeira a acontecer. Como defendia Eco (com outras palavras), sentimos o tempo a passar enquanto lemos. Isto percebe-se bem em obras como Os Maias, de Eça, Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, Memórias de Adriano, de Yourcenar, As pupilas do senhor reitor, de Júlio Dinis, David Copperfield, de Dickens, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Ponto de partida: na basse e ao redor da intriga (do enredo), existe um contexto referencial estável, feito de repetição e de pressuposta normalidade, isto é, a diegese.
Quem não tem paciência ou jeito para construir boas (verosímeis) diegeses, deve limitar-se à – também nobre e bela – arte do conto.
Na minha pobre carreira literária, tenho viajado por todos os modos – narrativa, poesia, teatro, crónica. Mas sei muito bem que a casa principal onde verdadeiramente quero morar é a narrativa. Desde sempre, até a dormir me acontece imaginar ou (re)criar histórias. Dizem-me, às vezes, que sou um bom contador. Isso não (me) chega, infelizmente. Confesso: ando há uns bons trinta anos a ver se me acontece enfim a diegese ideal para o romance que sonhei meu. Até ver, hélas, com mais paciência que sucesso. Mas, tirando o facto de isto me ser insuportável, nenhuma gravidade há, senhores, a reportar-vos.

Coimbra, 22 de Julho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho

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