Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 6 de agosto de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (99)


Tempo de qualidade

A meio da corrida higiénica, na sossegada periferia de Coimbra, avisto um pequeno campo de jogos, cercado por uma frágil rede. Sobre o piso de cimento, um homem já maduro brinca com um petiz de 7-8 anos, cada um lançando, à vez, a bola para o cesto de basquetebol do lado da estrada. São, talvez, sete horas da tarde. Ainda há luz e calor bastantes. Passo por esta cena à velocidade de quarentão tranquilo e pega-se-me ao ouvido um coro de gargalhadas: o riso do provável pai misturando-se com o riso do provável filho, gaiatos ambos.
Os anglófonos têm para este tempo – aparentemente inútil – que concedemos ao convívio com família ou amigos, à roda de uma mesa, de uma bola, de um animal de estimação, etc., quality time [tempo de qualidade, em tradução literal].
Não investir nestes bocadinhos do nosso relógio comum é, na maioria das vezes, triste e trágico. Os laços que, em adultos, sobrevivem à (inevitável) perda da inocência quase sempre decorrem da memória ternurenta e grata de certos instantes preciosos. Pais e mães, mesmo sem de tal terem consciência, oferecem-se momentos de felicidade pura e gratuita e garantem, sem disso terem consciência, a eterna proximidade das crias. 
A minha Filha e eu partilhámos, desde muito cedo, o amor pelos livros e pelo humor. Um dia perguntou-me quem era Deus. Eu levantei os olhos do meu Vergílio Ferreira e respondi-lhe: “É como o pai. Mas mais alto e com barba.” E ela riu-se com gosto, antes de regressar ao volume de Flores para Crianças que, há pouco, eu a mãe lhe compráramos.
Tenho saudades dessas horas (ou minutos, ou segundos) em que existimos simultaneamente, compinchas da praia, do Café, da livraria, do campo de jogos, de viagens, de passeios à beira do Mondego. Foi então, nessa nossa cumplicidade tão querida (extensiva à minha mulher, claro, para sempre a melhor amiga daquela menina), que construímos a delicada Casa da nossa confiança, co-inquilinos da cultura, da liberdade, da tolerância, do Sporting, da literatura, da família, do mar, dos amigos. Aqui ficámos a morar juntos, ainda que eventualmente afastados no mapa desmancha-prazeres da realidade.
Ao escrever “Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar”, era de tempo essencial e valioso que a preclara Sophia Andresen falava. De tempo de qualidade.
É demasiado curta a vida para nos satisfazermos de amor, perdoai o clichê. E demasiado curta é uma crónica para dizer a urgência de não perdermos tempo. Mas não é com a bruta pressa que resolvemos este consabido problema de morrermos todos demasiado cedo. É, antes, digo eu, aproveitando cada oportunidade para estarmos com quem amamos, aceitando de cada dia o Sol possível, reclamando de cada segundo o digno sumo que urge beber antes que fuja ou se estrague. De preferência, ó contemporâneos e vindouros, com a sábia despreocupação das crianças, talvez num entardecer qualquer, na periferia do caos adulto a que chamamos sociedade.
A eternidade é o que para sempre fica. Coisa gasosa como os sonhos, fresca como água da fonte e saborosa como, digamos, uma meloa portuguesa. É a “memória do amor”, como narratologicamente chamou Agustina à ideia de ressuscitar os instantes que valeram (valem) mesmo a pena. Coisa aparentemente inútil, eu sei, como estarmos uma inteira tarde a olhar para o mar.

Coimbra, 30 de Julho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.welovestar.blogspot.com.]

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