Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 7 de outubro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (106)


Morrer-nos alguém

Vou regularmente a um cemitério coimbrinha, acompanhando a minha irmã num ritual de saudade: ela limpa a campa do marido, falecido há três anos, e renova-lhe o arranjo floral que decora aquela ausência em pedra. O ausente, para além de cunhado, era também o meu melhor amigo – e a toda a hora me faz falta o mundo (muito mais rico e completo) que, antes da sua partida, éramos e fazíamos. Todas as mortes, creio, nos doem como se se tratasse da nossa própria Morte. E com o desaparecimento de quem nos é próximo, é isso mesmo que sucede, mas em pior.
Na semana que passou, a terra transmontana onde resido (há mais de vinte anos) perdeu um homem importante. Era meu rival no futebol e, talvez, na mundividência política, mas era sobretudo um cúmplice da minha existência essencial, amante dos simples prazeres da vida, do humor, da conversa, das histórias, da família, dos pequenos-grandes sonhos que tornam menos árido o quotidiano dos homens. Era mais novo que eu três ou quatro anos, cheio de força tão pouco antes de adoecer: é, aliás, dessa saúde que me lembro, agora, como um parênteses alegre e lindo encravado na Noite definitiva.
Ouvi, pela enésima vez, durante o caminho entre a igreja e o cemitério, alguém dizer “É a vida” e “A morte toca a todos”. Mas até essas palavras, apesar de vestidas de resignação, sabem ao vinagre da impotência, senão ao veneno da revolta.
No dia 27 de Setembro, televi, na RTP2, o documentário “Gabo, a magia da realidade”, datado de 2015, do realizador Justin Webster. Nele, Gabriel García Márquez fala, em discurso directo, da condição fatalmente mortal da condição humana. Cito: “Eu a única opção que aceito é a de não morrer. O importante é estar vivo. E acho que a morte é uma armadilha, uma traição que incondicionalmente nos captura. Para mim é muito sério e grave o facto de tudo se acabar, e praticamente sem aviso… Acho que é injusto.” A jornalista pergunta-lhe: “Que podemos fazer para o evitar?” E Gabo responde: “Escrever muito.
Um dos irmãos do senhor Avelino disse-me, durante o abraço de pêsames, na noite do velório: “É preciso recordarmos os bons momentos…”
Dei por mim a pensar: certo e triste; triste e certo. E escrevo-o.

Coimbra, 30 de Setembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06 de Outubro de 2017. A foto, com o saudoso Avelino Borges, data de 2006, quando ainda éramos todos ainda razoavelmente imortais.]

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