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Número de Ondas

terça-feira, 14 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (111)


A ilha dos tesouros

Ando a telever, com fidelidade canina, uma série genericamente intitulada “A Ilha”, que passa na Sic Radical e vai já na 2ª série. Em boa verdade, não obstante a aparência de documentário, trata-se de um “reality show”, visto que os protagonistas são cidadãos britânicos, tão comuns como eu e os meus caros leitores, ocupados – todos – com a questão da sobrevivência em contextos difíceis.
A produção do programa leva alguns indivíduos (homens, num dos casos; mulheres, noutro) para uma ilha do Pacífico, desabitada e inóspita, ainda assim com recursos teoricamente suficientes para se sobreviver. Os novos ilhéus recebem, à partida, cinco machetes, cinco anzóis e alguns (rudimentares) apetrechos (por exemplo, uma panela e um bidão metálicos). Terão, depois, de ser capazes de construir abrigos e camas, de fazer uma fogueira e mantê-la, de defender-se dos perigos à solta na ilha, de recolher água e fervê-la (para a tornar bebível sem riscos fatais), de pescar, de caçar, de recolher frutos, tubérculos, moluscos, larvas.
Estão radicalmente entregues a si próprios (as próprias filmagens, realço, estão a cargo destes neo-insulares). Só em último recurso poderão solicitar ajuda do exterior, nomeadamente em caso de desistência ou de problemas graves de saúde. Cada dia é uma luta tremenda. Arranjar comida ou água, tratar de feridas, resistir à inclemência da chuva ou do calor – tudo assume uma dimensão única e épica. A mim, na confortável condição de espectador, comove-me o (raro) sucesso da pesca, a morte de um caimão às mãos de um operador de câmara e de um técnico de informática, a descoberta de uma poça com água suficiente para alguns dias. Ali, dia após dia, cada indivíduo encontra em si e em cada um dos outros as aptidões que, conjugadas solidariamente, tornam menos penosa a sobrevivência.
Ainda que diferidamente, é como se reencontrasse Swift, Defoe, Tournier, Fielding, Camões, Fernão Mendes Pinto, Calvino, Stevenson – e novamente me tornasse cúmplice da aventura fundadora da existência humana, conhecendo e dominando a Natureza, superando os perigos e o sofrimento, resistindo à penúria e ao desânimo.
Tal como percebera, em outras ocasiões, pela literatura de viagens, confirmo nesta série que boa parte do valor da vida está no mérito de ultrapassar os obstáculos e as dificuldades concomitantes ao verbo viver.
Em certo momento, um dos aventureiros fala do aparente paradoxo que há na ilha, por se tratar de um espaço majestosamente belo e mortalmente perigoso. Acrescenta (cito de cor): “Não é só o facto de, aqui e ali, enfrentarmos ratoeiras. É toda a ilha ser uma ratoeira!” Ora, a piada desta observação está no seu potencial metafórico: basta que substituamos “ilha” por “vida”.
Há dois tesouros fundamentais que retiro de quanto tenho televisto para a nossa moderna e mui sofisticada existência:
a) o que temos e damos normalmente por vulgar & adquirido é, se visto sob um ângulo essencial e justo, coisa muitíssimo preciosa;
b) só é possível a sobrevivência de cada um com o esforço (inteligente, concertado e solidário) de todos.

Vila Real, 05 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 09-11-2017.]

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