Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

domingo, 19 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (112)



A um jovem professor

O filho de um amigo, estudante do 7.º ano de escolaridade numa escola em Coimbra, confidencia-me o seu gosto pelo estudo, sobretudo pela literatura. Adivinho que será bom aluno, em particular a Português. Ele confirma, mas obtempera: “Não vou ter nível 5. Vou ter 4.” Pergunto: “Porquê?” E ele responde: “A professora não dá nível 5 no primeiro período. Tem medo de que os alunos desçam no segundo…
Conheço há muito esta “filosofia” (e as aspas sou eu a rir-me tristemente.) Tenho falado bastante sobre o fenómeno, em contextos formais ou informais, e desconfio de que numerosos colegas não têm já paciência para aturar a minha indignação. Esta opção por atribuir nível 4 a alunos que mereceriam 5, à luz dos critérios definidos, não é apenas ilegal – é pouco inteligente.
Costumo trazer à discussão o programa de Português, dividido geralmente em três macro-conteúdos: texto narrativo, texto dramático e texto poético (claro que estou a resumir, por óbvias razões de economia enunciatória). Imagine-se que, no primeiro período lectivo, enquanto estudava a narrativa, o aluno estava “nas suas sete quintas”, participando activamente nas aulas, obtendo excelentes resultados nos testes, cumprindo – com denodo, entusiasmo e brilho – as suas tarefas. O docente, por capricho pessoal, recusa-lhe o nível máximo. Chega o segundo período: o aluno, para além de (quem sabe?) descorçoado com aquele nível 4, vem a revelar-se menos bom no estudo do texto dramático, seja porque lhe desagrada esse modo literário (ou a escolha de autores obras para o estudo da matéria), seja simplesmente porque está menos focado nos deveres escolares durante aqueles meses de Janeiro-Fevereiro-Março, eventualmente passados a curtir desgostos amorosos ou desportivos. O professor volta a atribuir-lhe o nível 4, senão o 3. E dirá, imagino eu, com pacóvia assertividade: “Eu não dizia? Olha se eu lhe tivesse dado o 5…
Ora, a putativa conclusão do putativo docente é pouco séria, desculpai-me a franqueza. Se o aluno, após ter obtido nível 5 no primeiro período, tivesse registado um menor rendimento no decurso do segundo, que problema haveria em propor, nesse caso, a descida do nível 5 para o nível 4 (ou mesmo o 3)? Problema, de facto, é conseguir “devolver” ao aluno o nível merecido no primeiro período, se a criança ou jovem vítima desse “roubo” não mais repetir, ao longo do ano escolar, a excelência do rendimento inicial.
Creio que, em muitas circunstâncias, bastaria aos professores a generosidade (i.e., a humildade) de ver cada situação através dos olhos dos seus alunos, no sentido de bem aferir dos prejuízos ou dos ganhos pedagógico-pessoais das decisões tomadas. Atrevo-me a dizer que a maioria dos meus colegas tem esse cuidado (e ainda bem).
Quando, em 1985, iniciei a carreira de professor, disse aos alunos, logo ao primeiro dia, na apresentação, que contava já com dezasseis anos de experiência. O meu público riu-se, divertido, como se aquela afirmação fosse uma piada. Pois como poderia alguém tão novo (com vinte e dois aninhos cheios de frescura e acne) ter já dezasseis anos de experiência?
Expliquei-lhes, cordialmente, que estava a contabilizar os meus anos “do outro lado”, como estudante, testemunha (como eles) das melhores práticas e das piores barbaridades. O velho professor que sou hoje tem um recado para o jovem professor que fui em 1985: “Tinhas razão, pá.”

Vila Real, 11 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 16-11-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.construirnoticias.com.br.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Mais de acordo não poderia estar. Tive, no meu 10.º ano, uma professora de Iniciação à Estatística (!), portanto uma ciência supostamente exacta e objectiva, que anunciava dar aos alunos a nota que resultasse da média dos testes... mas que no 1.º período nunca dava mais de 14 (!!). Tive 20 nos dois primeiros... e levei no Natal a nota 14, exactamente como os colegas que tiveram 14 nos testes. No período seguinte, baixei para 17-18... levei 14 outra vez, com o argumento de que não poderia subir-me a nota pois tinha baixado nos testes (!!!). Isto só para ilustrar que os maus exemplos, a este nível, são de todos os tempos e lugares.
A escala de 1 a 5 é redutora e foi pensada para reduzir ao mínimo a diferenciação e a selectividade. Podemos gostar dela muito ou pouco, mas o que nos cabe como professores é aplicá-la com intuito formativo e com um sentido de justiça temperado pela necessidade de motivarmos os miúdos para a aprendizagem e de levarmos a sua formação o mais longe possível. Quando atribuímos um nível, tudo o que for frustrar legítimas expectativas (ou, no extremo oposto, dar de bandeja o que não é minimamente merecido) só deseduca. Há por vezes colegas que adoptam as mais bizarras interpretações da escala de classificação e/ou que carecem do mais elementar bom senso no momento de avaliar. Alguns parecem extremamente inseguros, outros fazem alarde de saber avaliar melhor do que ninguém. Ora os jovens vivem muito de exemplos, ainda que no momento possam parecer ignorá-los. Avaliar bem, com compreensão mas também com justiça (ou, pelo menos, procurar fazê-lo dentro das humanas imperfeições) é uma das dimensões mais importantes do trabalho do professor. Já não me lembro bem do que aprendi com a professora de Introdução à Estatística nem lhe recordo o nome; mas lembro-me bem dos muitos valores de classificação que me subtraiu sem razão, e do desalento que eu e outros colegas meus sentimos naquela altura. Alguns talvez tenham passado a detestar tudo o que lembrasse Estatística. Assim como é importante apoiar os que têm dificuldades, e muita pedagogia actual centra-se nisso (nada contra), não podemos esquecer que os alunos mais dotados ou mais preparados também necessitam de reconhecimento e estímulo. Um abraço, JJ.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Amigo Paulo, li com atenção o que gentilmente escreveste em "resposta" à minha crónica. Ilustras e aprofundas muito bem quanto quis dizer. Já agoa: não me admira a consonância das nossas visões - não é por acaso que reconheço na tua pessoa o colega com quem mais me identifiquei em 32 anos de profissão. Nível 5 para ti & abraço! JJC