Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (116)



Vida(s) de cão

O cronista alberga, por definição, o pavor de ser mal interpretado. No meu caso, o que temo não é que discordem de quanto diga, é sim que não percebam o que verdadeiramente quero dizer. Preâmbulo feito, sabei que a crónica de hoje fala em cães, mas visa sobretudo falar de pessoas.
Já tive cães na família. Parte das alegrias e dos lutos da minha meninice compreendem a espécie canina. Depois, casado e com descendência, convivi com uma cadelinha chamada Dara, motivo de mil aflições, arrelias e prejuízos, mas igualmente responsável por instantes de pura felicidade e de irracionais risotas.
O que me arrependi, neste segundo caso, da opção de trazer para casa o animal! A minha mulher e eu quisemos sobretudo satisfazer um pedido da nossa Filha, amenizando o remorso de, por razões profissionais, nos termos mudado de Coimbra para Trás-os-Montes e obrigado a miúda a interromper rotinas, amizades, expectativas, conforto. O problema veio depois: a casa que arrendámos era exígua para a energia (ilimitada) do ser recém-chegado; o nosso tempo livre era escasso para quem queria tanto a nossa companhia. Em suma: a Dara deveio infeliz e, enquanto sofria de solidão, incomodava os vizinhos com uivos e latidos incessantes. Durante a minha infância, os animais domésticos tinham espaço para viver (não digo, notai, sobreviver; digo viver). Recordo um pátio grande, infinitos arbustos, arvoredo largo, e gente sempre disponível (i.e., sempre presente) para um passeio, uma festinha, uma reprimenda educativa.
Voltando ao tempo da Dara, faço questão de sublinhar o nosso cuidado em, tanto quanto conseguíamos, evitar que a cadela causasse danos a vizinhos e humanidade em geral: se ela sujasse ou estragasse, nós limpávamos e reparávamos; se ela rosnasse ou ladrasse aos transeuntes, nós intervínhamos, serenando-a ou afastando-a das pessoas.
Hoje, devinda memória a hiperactiva cadela que, por 13 anos, amámos como família, não temos cães em casa. Mais: não queremos ter cães em casa. Aprendemos a lição: para sanidade e real bem-estar de humanos e de animais, é preciso que a possibilidade de convivência compreenda, à partida, condições dignas. Continuo a ouvir com frequência a pergunta: “Não queres ter um cão?” Mas a própria ideia de “ter” um animal me parece já um erro, pela redução do ser vivo à condição de propriedade.
Lamento as gentes e os cães da minha tão estreita rua, estes pela falta de espaço, liberdade e companhia, aqueles pela – adivinhada - pressão a que estão sujeitos (as tropelias dos canídeos, o barulho, os fatais excrementos pela casa, pelas escadas, pelas ruas). Vidas, ambas, de cão.
Talvez os leitores me não perdoem a franqueza, mas eu creio que, por muito amor e compreensão que haja pelos admiráveis cães, é hoje impossível ignorar o flagelo representado pelas planícies de porcaria em que se tornaram os passeios de tantas urbes. Uma minoria recolhe, em saquinhos civilizados, a escatologia dos famosos melhores amigos. A maioria deixa que fezes e mijo se espalhem, sem regra, por passeios, aparcamentos ou pátios.
Já vi uma senhora à espera que o seu (enorme) cão se aliviasse à porta do prédio coimbrinha onde vivo. Farto de fingir que estava tudo bem, garanti-lhe que, logo que pudesse, não deixaria de passar com outro cão à sua própria porta - para lhe devolver a urina canina ali deixada. Virou-me as costas, murmurando (talvez) que eu era um desses crápulas que detestam animais.

Vila Real, 10 de Dezembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-12-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sobral24horas.com.]

3 comentários:

Paulo Pinto disse...

É mesmo fácil sermos mal entendidos: não é tanto por iliteracia ou por limitações do entendimento, é mais pela ligeireza com a qual muita gente só lê duas linhas e tira logo conclusões apressadas. Mas quanto à questão substantiva envolvendo as excreções caninas: um cão habituado a passear com o dono e devidamente educado só faz as necessidades numa área relvada ou em terra, à margem dos locais calcorreados pelas pessoas. É o que o meu faz, por conclusão que ele mesmo tirou quando reparou que a minha voz ficava mais grossa sempre que ele fazia num sítio duro e mais fininha quando ele ia aliviar-se na vegetação. Menos mal. Muitas zonas urbanas têm, infelizmente, todo o espaço pavimentado. Um dono civilizado traz um saquinho para as fezes ou usa algum que a autarquia forneça em ecopontos caninos. Já quanto à urina, é mais difícil se não houver vazadouro adequado. Muitas vezes vou a pé para a minha escola actual, e por isso dou-te um conselho de conhecedor: vê onde pões os pés.

Anónimo disse...

Compreendo perfeitamente o que pensas e concordo, em parte, com o que dizes...

Sabes o quanto gosto de animais, e de cães em particular.
Também me custa saber que tenho o meu em casa, fechado todo o dia... Mas eu preciso dele e, se ainda vou vivendo, à minha maneira, é porque ele(s) vive(m) comigo. Preciso dele(s) como da minha mãe e do meu irmão... preciso deles como preciso de oxigénio, água e comida.

Sou das que apanha os excrementos do meu cão mas, confesso, não sempre: quando me esqueço do saquinho ou quando considero que a evacuação é feita num sítio sem afluência humana.
Sim, sou uma das que nem sempre apanha o presentinho e quanto à urina... não conheço forma de evitar que o faça ou de recolher o que faz...
Mas então... e as pontas de cigarro, e o lixo generalizado que ainda vemos nas ruas...

É um facto que me custa ver o meu cão só e fechado durante o dia; também não gosto de ver os seus presentes espalhados por aí; mas o que mais me custa e revolta é ver os animais abandonados.

Isso é o que mais me magoa.

RGC

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caríssimo Paulo, obrigado pelo teu comentário. Concordo com a ideia de que, a montante, a solução passa por educar os cães. O problema é haver quem não saiba/possa educar por absoluta falta de valores ou de técnicas. Abraço!


Caríssima Rosário, agradeço a tua lucidez e a tua compreensão. Como reparaste, a crónica não visava diabolizar os cães, antes equacionar a "dignidade" de quem ´se arroga o direito de "ter" um cão em casa. Não conheço quem, mais do que tu, seja digna de conviver com animais. Conheço a tua (admirável) forma de pensar e de ser, sei quanto amas os animais (em particular, os cães), testemunhei muitas vezes a tua preocupação com o seu bem-estar, a generosidade da tua presença sempre que possível, a tua responsabilidade, o teu sentido cívico. Mas tu admites decerto que não és a regra - e que, em grande parte dos casos, a realidade, nisto de donos/tratadores de cães, é infelizmente tão indigna como a que procurei descrever na crónica. Recebe um beijinho de amizade e admiração. JJC