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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (118)


Epifania para Ano Novo

Quando a crónica se deixa cair na esparrela da catequese paternalista, o cronista corre os riscos concomitantes: o mortal ridículo, o imbecil moralismo e a provável ineficácia. Mesmo que o objectivo seja virtuoso, pois de boas intenções está a (má) literatura cheia. 
Não obstante, atrevo-me a uma incursão por este domínio delicado, ó pacientes leitores. É que se cumpriu mais um aniversário da morte de um familiar próximo, e a efeméride teima em cruzar-se com esta data de fim de ano. O meu saudoso Z.M. andou pelo inferno de um vício tenebroso, o alcoolismo, perambulando os pântanos da indigência mais triste, subindo depois a ladeira insegura da esperança e chegando finalmente à praia apetecida da salvação. É muito difícil não me lembrar deste monumento querido quando quero falar de ano novo e de mudança.
O Z.M. começou a beber ainda muito jovem. A família e os amigos lidaram com o fenómeno (normalmente divertido) de forma despreocupada. Já jovem adulto, fez a tropa, começou a trabalhar na construção civil, casou-se e teve uma filha. Era um homem bem parecido, inteligente, com sentido de humor, amante do convívio e da festa. A bebida continuou a fazer parte do seu quotidiano, infelizmente sem a graça e o carácter inócuo dos primeiros tempos: a qualidade do trabalho piorou, as relações sociais deterioraram-se, o casamento ruiu, a sua saúde e o seu aspecto foram-se degradando miseravelmente. De vez em quando, dávamos por ele caído num qualquer canto junto à tasca terminal de ocasião e tínhamos de o carregar para casa como um fardo trágico.
Falei muitas vezes com ele. Recordava-lhe o que ele era versus o que ele poderia ser (o que ele tinha a obrigação de ser), o trabalho precário, as qualidades que desperdiçava, as mulheres bonitas que já não olhavam para ele, a quase impossibilidade de participar na vida da filha, a angústia da família e dos amigos, a falta que ele me fazia na sua versão alegre, lúcida, sã. Ele respondia-me, invariavelmente: “Eu sei. Mas isto vai mudar. Juro-te!
Um dia, muito mais tarde que cedo, mudou realmente. Ao anoitecer, quando cambaleava entre a tasca e a sua casa, caiu inanimado. Veio a ambulância, o internamento, os exames – e a sentença definitiva do médico: “Outra destas e morre.
O Z.M. decidiu que queria viver. Cortou com a bebida de aí em diante. (Atenção, não diminuiu o consumo: cortou mesmo, radicalmente, com o mal.) Voltou a trabalhar, recuperou os hábitos de higiene e uma saudável vaidade pessoal: tratou dos dentes, reconstruiu o guarda-roupa, passou a ajudar a filha (com a sua presença e o seu amor, claro, mas também com algum auxílio económico), tirou a carta de condução (à primeira), comprou um carrito, arranjou uma namorada, regressou ao convívio limpo e alegre da família e dos amigos. A ressurreição foi traída, uns três anos depois, pela puta da Morte, que veio cobrar oncologicamente os excessos da vida anterior. Mas a imagem que dele ficou na nossa memória foi a de um Homem que saiu do inferno e veio cá acima gritar-nos que é possível mudar, e que o milagre de nos salvarmos está essencialmente em cada um de nós.
Quando me calha saber de um ou outro conhecido caído nas malhas do vício (medicamentos, álcool, jogo, droga), lembro-me sempre do Z.M., que me dizia “Isto vai mudar, Juro.” – e que um dia deixou mesmo de (se) adiar o regresso à felicidade.
Eis o que eu vos queria dizer: que cada um encontre a digna epifania para a sua própria circunstância. Por si e por quantos o estimam e amam. Tom de catequese, ó leitores? Desculpai-mo, se puderdes. Mas não me ocorre melhor forma que esta para vos/nos desejar Feliz Ano Novo.

Coimbra, 31 de Dezembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04-12-2018. A ilustração que o acompanha foi colhida, com a devida vénia, na net (sem – até ver - referência autoral conhecida).]

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