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Número de Ondas

segunda-feira, 12 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (127)

Pães nossos de cada dia

Passou no jornal da SIC, a 22 de Fevereiro, uma reportagem bem interessante. Em traços muito resumidos, os espectadores conheceram uma família brasileira ainda jovem (Pai, Mãe, uma Filha), gente culta, de estrato socioeconómico médio-alto, que veio radicar-se em Portugal. O motivo, está-se mesmo a ver, não foi a pobreza ou o desemprego, como acontece na maioria dos casos de emigração. Aliás, aquela Mãe tinha uma empresa bem-sucedida no Brasil, que agora continua a dirigir à distância, via internet. Pergunta: que motivo terá estado, afinal, na decisão (decerto dolorosa) de migrar? Resposta: a segurança.
Assisti a caso semelhante, há dois anos, na escola onde trabalho: já em pleno 3.º período, apareceu-me um novo aluno, de origem brasileira. Os pais sabiam que mês e meio era tempo insuficiente para o filho transitar para o 10.º ano, mas tranquilamente aceitaram a situação: queriam apenas que ele se adaptasse, de modo a, no ano lectivo seguinte, recomeçar o 9.º ano, plenamente integrada na realidade portuguesa. Porque vinham – acrescentaram - para ficar muito tempo, talvez para sempre. Motivo da vinda: a segurança da família.
Agora, um ponto de ordem: esta crónica não é sobre o Brasil. Creio que há várias e distintas realidades nesse país (ou, dito de outro modo, em todos os lados há Brasis de insegurança, incluindo em Portugal). O que aqui vos trago para reflexão é o valor da paz e da ordem, no contexto da ideia de felicidade humana.
Conhecemos casos de migrantes que procuram um lugar onde seja possível sobreviver no sentido mais básico de todos, i.e., de ganhar o pão de cada dia. E casos de migrantes que fogem de ditaduras, de racismo, de intolerância religiosa, i.e., que buscam um espaço de democracia, de tolerância e de liberdade. Nos últimos tempos, há também quem simplesmente aspire a um espaço onde seja possível ter os filhos na escola (pública ou privada) sem o risco de roubos-raptos-agressões-morte. Um espaço onde seja possível parar no semáforo vermelho sem que, de súbito, surja o assassino que para sempre enlutará a família. Um espaço onde seja possível levar a descendência à praia e regressar a casa, com todos vivos, para o almoço de Sábado.
É verdade que a emigração continua a significar, maioritariamente, um caminho para o pão. Mas a natureza do pão varia. Há, em síntese, o pão-comida (pão-pão), o pão-democracia e liberdade e o pão-segurança. Nenhum destes pães é individualmente bastante para vivermos felizes.
Eu abomino os clichês que fazem a apologia da resignação e da passividade, sobretudo pela via da relativização dos nossos males (“Conforma-te”; “Há quem tenha menos”; etc.). Queixarmo-nos faz parte da nossa condição e da nossa dignidade, ponto final. O meu ponto é outro, quiçá ingénuo: orgulho-me de viver num País que tem, hoje, para oferecer aos nativos e aos imigrantes, esse oxigénio vital da democracia, da liberdade, da tolerância e da razoável segurança. Não é mau.

Coimbra, 02 de Março de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 07-03-2018. A imagem (exemplo do melhorque háem Portugal) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.coimbraportugalguide.com]

1 comentário:

Paulo Pinto disse...

Sim, sim, e nisso, com todos os seus defeitos, diferenças e contradições, honra seja feita a todos os partidos políticos (com excepção de um ou outro grupelho sem expressão), da esquerda à direita, que até hoje nunca deixaram de partilhar os valores básicos da democracia e da tolerância (as recentes posições acerca do acolhimento de refugiados, de sentido unânime, são reveladoras disso), que sempre se distanciaram dos populismos extremistas e que se limitaram a combater por vias legítimas e pacíficas mudanças com as quais discordavam (por ex., a vinda da troika ou as privatizações, à esquerda; a aprovação das leis do aborto e do casamento homossexual, à direita). Nos tempos que correm, não é qualquer país europeu que se pode gabar de não ter forças xenófobas ou extremistas no Parlamento; e em poucos países europeus se encontrará um povo tão inclinado à convivência pacífica como o nosso. Mas temos de estar atentos: ainda sentimos que Portugal é «nosso». Como será se começarmos a duvidar disso, se os portugueses comuns começarem a pensar (ou pior, a dizer em voz alta)que já cá temos estrangeiros a mais ou se, na sequência de um atentado, começarem a hostilizar abertamente os Muçulmanos que cá vivem? Segurança, paz, tolerância, liberdade, bem-estar económico, são pilares essenciais do edifício em que queremos viver. Precisamos de detectar quaisquer fissuras enquanto forem pequenas. Abraço!