Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 19 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (128)



A arte de bem conversar 

Assisti, há dias, a uma extraordinária entrevista televisiva no Canal Q, conduzida pelo competentíssimo Aurélio Gomes. O entrevistado, um arqueólogo de – talvez – sessenta e muitos anos (ou mais), com um currículo extenso e variado na resistência ao fascismo, revisitou a sua biografia de forma ora divertida, ora dramática. Cada pergunta era, em regra, motivo para considerações e relatos cheios de vida e de graça. O principal mérito do entrevistador, ali, foi dar tempo ao entrevistado para discorrer sobre as suas memórias, as suas ideias, as suas emoções. 
Ocorrem-me, em contraponto, algumas máquinas-de-falatório que pululam pela pantalha generalista. Gente que vê o entrevistado como mera peça acessória do ofício entrevistador. Gente que quer brilhar, sem paciência para ouvir a profundidade de cada resposta. Sim, há um certo estilo esganiçado que assassina as entrevistas. Já testemunhei demasiadas vezes este tipo de crime, senhores: um entrevistado avisa, para nossa felicidade espectadora, que vai contar uma história; a jornalista, a rebentar de ego incontinente, não admite desvios e, atropelando a história que aí vinha, atira-lhe: “Mas o que é que vai mudar agora na sua carreira?” [Nota: nos cursos de jornalismo, deveria explicar-se aos futuros entrevistadores que, quando alguém vai contar uma história, dá-se-lhe tempo para o exercício narrativo.] 
Por razões de espaço e, já agora, de higiene retórica, omito nomes exemplares desta pulsão narcísica, inimigo(a)s recorrentes de conversas, capazes de reduzir à vulgaridade os verdadeiros tesouros que lhes chegam às mãos. Mas há duas figuras que gratamente elejo como modelos da conversação competente e invariavelmente interessante: Armando Baptista-Bastos (jornalista e escritor, recentemente falecido) e Júlio Isidro (decano da rádio e da televisão, ainda no activo). Lembro-me de Baptista-Bastos a entrevistar, na SIC, um português septuagenário que tivera de sair de Portugal por motivos políticos e vivera em França, durante décadas, até chegar o 25 de Abril de 1974. O entrevistado, ao recordar-reviver alguns episódios, chorava. Que fez Baptista-Bastos? Respeitou-lhe o tempo do pranto, dos suspiros, do próprio exercício da memória. Pontualmente, intervinha a propósito e com delicadeza. Resultado: uma entrevista inesquecível. 
Júlio Isidro mantém, na RTP Memória, um espaço de entrevista, normalmente dedicado a nomes mais antigos da música, do teatro, da rádio e da televisão. Bem preparado, culto, sensato, delicado, Júlio Isidro dá o palco aos entrevistados – e estes, sentindo-se confortáveis (em casa), vencem qualquer timidez ou medo de falar: são genuínos, espontâneos, sinceros, humanamente interessantes. Para o espectador, não tenho dúvidas, é um regalo. 
Saltemos, ó Leitor, deste domínio técnico-profissional (a entrevista) para a nossa vidinha de todos os dias. Quantas conversas se perdem por não se dar ao outro tempo de falar? Quanta novidade se deixa de receber por falta de paciência (ou humildade)? Sabei que, ao telefone comigo, a minha velha Mãe tende a interromper-se, a suspender a fala, ou porque se esquece do que dizia, ou porque há nomes-datas que tardam a chegar-lhe ao discurso. Eu aprendi a deixá-la respirar, sem pressas egoístas e contraproducentes. Depois, ouço-a gritar: “Ah! Já me lembro!... Ainda estás aí?”
Estou, Mãe. Estou a ouvi-la. É essa também a obrigação de quem conversa, não é? 

Vila Real, 11 de Março de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-03-2018. As imagens (Baptista-Bastos entrevistando o Professor Agostinho da Silva e Júlio Isidro entrevistando Madalena Iglésias) foram colhidas, respectivamente, & com a devida vénia, em www.ensina.rtp.pt. e em www.youtube.com.]

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