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Número de Ondas

segunda-feira, 16 de abril de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (132)



O (o)caso de Lula


Terá sido Pierre Vergniaud a dizer, das revoluções, que se assemelhavam a Cronos, também elas devorando os seus filhos. O próprio Vergniaud serviu de ilustração para este mortal apotegma, como se sabe. 
Em Portugal, Otelo será, entre outros exemplos, a mais viva prova do que o francês do século XVIII axiomaticamente postulou. Rosto imperecível do 25 de Abril da nossa liberdade e da nossa democracia, acabou por se meter, no tempo seguinte à madrugada da claridade máxima, em algumas alhadas bem menos luminosas, que envolveram acusações graves e até prisão.
Em muitas latitudes, abundam nomes de anjos populares que, de um momento para o outro, devêm vilões odiados e perseguidos. Quase sempre ocorre, no entretanto, alguma degradação da conduta de cada ainda-agora-tão-amado-herói, e a posteriori a leitura política ou histórica da sua biografia lá tenderá a arrumá-lo numa nevoenta nota de rodapé mais dada ao opróbrio cínico que à elegia épica.
Agora, Lula da Silva. Sob a sua liderança, por anos seguidos, o Brasil foi um maravilhoso exemplo de emancipação democrática e de progresso social e económico. O País promoveu a igualdade dos brasileiros no acesso à educação, à saúde e à justiça, tornando-se, aos olhos de todo o mundo – e com base em insuspeitos estudos e indicadores –, num lugar mais digno, mais justo, mais decente. Que sucedeu depois? O mais fácil é ler o fenómeno à luz da natureza corruptível de todos os seres humanos: talvez o homem do povo se tenha deslumbrado com as mordomias do poder e da riqueza, quiçá acreditando que tantos sacrifícios e méritos pessoais justificariam alguma retribuição venal. Talvez.
Mas essa percepção não elimina a fortíssima suspeita de que todo o processo começara já no oportuno-oportunista descrédito que sofreu o Partido dos Trabalhadores - com culpas próprias, naturalmente -, seguido do impeachment de Dilma Rousseff e culminando na entrega da presidência ao sinistro Michel Temer (sem, note-se, aquela maçada das eleições). Lula seria provavelmente o próximo presidente do Brasil, o que representava, para muitos brasileiros saudosos da ditadura ou assustados com o regresso da esquerda ao governo, um perigo. A sua prisão, nesse contexto, afigura-se muitíssimo conveniente.
Ponto de ordem: Lula da Silva não está, não pode estar acima da lei. Nem os maiores heróis de um País podem, num estado de direito, fugir à justiça. Mas - perdoai a desconfiança de quem, à distância, segue esta telenovela nos média – cheira aqui muito a esturro. E não é irónico que o beneficiário imediato da queda do PT seja um presidente acusado de numerosas ilegalidades, homónimo de um verbo no infinitivo tão curioso como Temer?

Coimbra, 08 de Abril de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi pubçicada no semanário O Ribatejo, edição de 12-04-2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.observador.pt.]



3 comentários:

Paulo Pinto disse...

Ao nível das cúpulas políticas e militares, o Brasil sofre de um problema tremendo de corrupção e de inúmeros esquemas de vantagens pessoais que beneficiam os titulares de altos cargos públicos. Há muitas indicações de que o PT, e Lula e o seu círculo em particular, tenham entrado no jogo, a crer em brasileiros e observadores desapaixonados, que são poucos hoje em dia mas ainda existem. Assim, sendo sem dúvida um processo político alimentado pelos seus inimigos (e o nível de ódio de alguns sectores da direita brasileira contra o PT é espantoso), também soa a falso pretender que seja só isso, como alguns afirmam e Lula apregoa. Temer e outros cafajestes foram e são piores do que ele, mas, lá está, a justiça tem de ser para todos. Não sei é se vai sobrar gente decente para governar aquilo...
Tenho família e vários amigos no Brasil, e visitei esse país em 1994, semanas antes da eleição de Fernando Henrique Cardoso, predecessor de Lula, e em 2016, sob o governo de Dilma Rousseff. As diferenças que notei foram muitas, mas foi numa pequena cidade do interior que melhor percebi a extensão da mudança: havia alguns melhoramentos nas infraestruturas, sim, mas não tantos assim. O que vi foi muito menos pobreza, pessoas bem vestidas e calçadas, famílias comuns às centenas nas diversões e esplanadas de uma feira de gado, lojas modernas, turistas brasileiros de classe média à descoberta do seu país, fazendas prósperas, pessoas mais informadas e cosmopolitas. Isto a muitas horas de distância de qualquer grande metrópole. Os anos de FHC e, sobretudo, de Lula tiraram milhões e milhões de brasileiros da miséria e abriram-lhes horizontes. Esse feito extraordinário ninguém lho pode tirar.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Paulo, cada um dos teus comentários é uma extraordinária mais-valia (para mim, para as minhas crónicas e para o blogue em geral). Aquém e além tal, é sempre um prazer e é uma honra "ter-te por cá". Grande & grato abraço! JJC

Paulo Pinto disse...

O prazer e a honra são meus, caríssimo. Deixa-me só complementar uma coisa que disse no comentário. Tenho uma «amiga» do Facebook que é brasileira com raízes judaicas (menciono este detalhe para contextualizar o que vem escrito mais abaixo), que conheci num curso em Jerusalém e de quem nessa altura aceitei amizade nas redes sociais. Nada tenho contra ela, mas deixei de manter contacto após algumas discussões acesas (embora respeitosas) no Facebook. O que ela escreve aterroriza-me, mas mantenho a «amizade» sobretudo, confesso, por voyeurismo intelectual. Vem isto a propósito do ódio de sectores da sociedade brasileira contra Lula e o PT. Copiei alguns excertos que ela publicou nos últimos dias, omitindo as reacções de aprovação, tão virulentas ou ainda mais, que surgem logo a seguir:

«Depois de oito dias sem beber cerveja, por motivo religioso pois estávamos no período do pessach judaico, hoje posso enfim comemorar! É Lula na cadeia!!»

«Notícias do oriente médio:
Enquanto Gleisi Hoffmann, a presidente do PT (partido terrorista) conclama o ódio dos árabes a invadir nosso Brasil e salvar um bandido, colocando nossas vidas em perigo; Bolsonaro está comemorando o aniversário de 70 anos do Estado de Israel.
Tirem suas próprias conclusões.»

Em relação a esta última, um «amigo» dela concorda mas (único caso em que surge uma adversativa) acha que Gleisi, no seu discurso num país islâmico não identificado, não apelou «explicitamente» a que os «Árabes» invadissem o Brasil para libertar Lula. A minha «amiga» replicou que, para ela, a presidente do PT foi «super-explícita». Madeirenses, estejam pois alerta: uma armada de porta-aviões líbios ou iranianos irá passar brevemente ao largo do arquipélago com a missão de assassinar os patriotas Bolsonaro, Aécio e Temer, destruir a força aérea brasileira, desembarcar comandos em Paranaguá, Sta. Catarina, bombardear Curitiba e trazer Lula da Silva para o seu exílio dourado em Benghazi.

Apenas para que não restem dúvidas: não ando a tomar drogas. Pelos outros não ponho a mão no fogo. Um abraço, JJ!