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quinta-feira, 3 de maio de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (135)

O chapéu do Vilaça e a justiça

Quase no final dessa obra-prima chamada Os Maias, do grande Eça, há um episódio de cariz burlesco que parece interromper o curso trágico dos acontecimentos. É no capítulo XVII. Carlos da Maia conversa com João da Ega sobre o Destino, concretamente sobre a extraordinária coincidência de um homem se apaixonar, entre tantas mulheres possíveis, pela própria irmã, na ignorância, ai dele, do parentesco. A este drama romântico junta-se um pormenor terrível, já mais próximo do imaginário naturalista-realista: Carlos, inebriado pela proximidade do corpo feminino de Maria Eduarda, não resiste a uma noite mais de amor, mesmo já ciente do concomitante incesto. No meio do colóquio com o melhor amigo, o protagonista é interpelado pelo procurador da família, o senhor Vilaça, que não sabe do seu chapéu e precisa dele para sair de casa. Lá se procura o chapéu, mas em vão. O Vilaça sai, pedindo desculpas pelo incómodo, e os amigos retomam a conversa. Poucos minutos depois, aparece novamente o Vilaça, pois o chapéu não há meio de aparecer e pode dar-se o caso de antes não se ter procurado bem. Lá voltam a procurar o chapéu, uma vez mais em vão. O Vilaça redobra as suas desculpas pelo incómodo e sai, permitindo que novamente ali se reate a melodia trágica da má fortuna caindo sobre pobres burgueses mortais. Mas, breves instantes depois, é Baptista, o criado-de-quarto de Carlos da Maia, quem os interrompe, porque o chapéu teima em não aparecer em lado algum, e o senhor Vilaça não quer ser visto na rua sem ele. Carlos explode, impaciente e indignado, manda que se empreste ao Vilaça um chapéu qualquer, irra, e sobretudo que não o importunem mais. 
Eu lembro-me de ouvir José Augusto Bernardes, Professor da Universidade de Coimbra, durante o ano curricular do meu doutoramento (aí por 2009), explicar o episódio como a omnipresença (diegética) do ambiente burguês na ação principal, forma de ilustrar a sociedade portuguesa tão dada a aparências, a formalismos, a convenções: o pobre procurador receava, ali, perder o respeito e a credibilidade pessoais se o vissem na rua sem tão importante apêndice indumentário. 
Na mesma sessão, falei eu próprio deste episódio como um exemplo de economia narrativa: uma pequena história interrompia a história principal, disputava-lhe a atenção, consumia-lhe tempo de discurso. Defendi que o grito final de Carlos da Maia significaria, ali, a prevalência narratológica da acção nuclear sobre a secundária. Era preciso continuar a narração mais importante, logo o chapéu do Vilaça deveria reduzir-se, a determinada altura, à sua insignificância relativa. 
Voltei a lembrar-me do chapéu do Vilaça a propósito da justiça portuguesa, que anda entretida com vídeos de interrogatórios a Sócrates e – no território da futebolice – com questões técnico-jurídicas sobre o acesso a emails e o cariz (legal ou ilegal) da consabida venalidade de árbitros, jogadores, dirigentes, oficiais de justiça, advogados, juízes, dirigentes. Explosões de ruído histriónico, de retórica ociosa, de fogo-de-artifício manhoso ou de maquiavélico caos multiplicam-se pela pantalha, pela radiofonia, pela papelaria mediática. São o chapéu do Vilaça, senhores! E é preciso que a gente não se distraia. Nestas tragédias, queremos mesmo saber, acima de tudo, o que aconteceu, o que acontece, o que vai acontecer em termos de acção principal. 

Vila Real, 28 de Abril de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem, que faz parte do filme Os Maias, de João Botelho (2014), inspirado no romance homónimo de Eça de Queirós, foi colhida, com a devida vénia, em www.apaladewalsh.com.]

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