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Número de Ondas

segunda-feira, 14 de maio de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (136)



Pobreza & riqueza (revisões) 

A Câmara Municipal de Ribeira de Pena (vila do distrito de Vila Real, Trás-os-Montes), no âmbito da comemoração do 44.º aniversário da amada revolução dos cravos, ofereceu aos seus munícipes um espectáculo de teatro de invulgar qualidade. Foi no dia 24 de Abril, pelas 21 horas, no magnífico auditório da terra. A Companhia de Teatro Filandorra, sedeada em Vila Real, apresentou a peça À manhã, de José Luís Peixoto, com sábia encenação de David Carvalho. Era 6ª feira, véspera de feriado, eu estava cansado, disse à minha mulher que não me apetecia sair. Ela insistiu, eu fui. Ainda bem duas vezes. 
A peça fala-nos sobretudo de solidão. Em palco, vemos-ouvimos velhos e velhas, numa qualquer aldeia portuguesa, vítimas da idade e da desertificação. Podia ser num lugar alentejano, ou beirão, ou transmontano. Podia ser uma história com os nossos avós, ou com os nossos pais. Podia ser connosco. 
Durante cerca de hora e meia, comovi-me perante os devaneios de uma idosa com demência; perante o desespero do marido já viúvo antes de o ser (que a esposa confunde com o falecido pai); perante a generosidade de um vizinho, que ilumina as trevas da sua antiguidade e do seu isolamento com a esperança de uma chuva salvadora das couves; perante a desesperada luxúria de uma solteirona, que bem alto afirma a sua virgindade e pouco discretamente a oferece em troca de algum adiado prazer proibido; perante uma viúva bonita, que sofre a falta do seu falecido, a distância (emigrante) de filhos e netos e também uma certa pulsão convivial e erótica, concomitante à circunstância de continuar vivendo. 
A peça de José Luís Peixoto atropelou-me o coração, atirando-me para cima aquela pobreza feita de solidão e de isolamento. Aquela pobreza, sim, que se vê melhor no contexto fragilíssimo da velhice. Recordo Sophia (lida num maravilhoso volume intitulado O Nome das Coisas): “Cortaram os trigos. / Agora / a minha solidão vê-se melhor.” Na verdade, depurada do foguetório ruidoso e colorido da juventude, da saúde, dos sonhos, da esperança, o que fica da nossa circunstância em trânsito é o essencial – neste caso, a tristeza da finitude e da humana impotência face à degradação fatal. E confirmamos, hélas, que a percepção da doença é mais vívida e trágica quando se está sozinho. 
A peça funda-se numa realidade portuguesa, familiar, próxima. As personagens são, de um ponto de vista económico e social, os nossos próprios velhos, sós e pobres, pobres e sós. Mas a pobreza maior, ali, visto o fenómeno pelos olhos comovidos do espectador, é mesmo a já dita solidão e o já dito isolamento. O meu sogro, num já longínquo Agosto, ao entardecer, numa espanada fronteira à praia de Machico, na Madeira, quando se discutia as vantagens de ser rico, disse-me: “Ser rico é não estarmos sós.” 
Ando a ficar lamechas com a idade. Isso ajudará a explicar as minhas lágrimas, no final, durante o longo aplauso aos actores e ao encenador, tributo em que participei também. E as lágrimas que vieram a seguir, durante a interpretação de “Grândola, Vila Morena”, do nosso amado Zeca, que juntou as vozes de artistas e público. Digo-vos: naquela mui rica hora da minha vida, no regaço do Teatro e de Abril, não havia solidão. 

Vila Real, 05 de Maio de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 09-05-2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.avozdetrasosmontes.pt.]


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