Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 22 de outubro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (108)


Meia dúzia de óbvios

1. Ao contrário do que alguns pedantes pensam e grandiloquamente defendem, dizer o óbvio vale, quase sempre, a pena. A Verdade merece, como tantas grandes canções de sucesso, um refrão que regularmente assinale, com ritmo e melodia eficazes, o essencial de nossas vidas.
2. Por exemplo: nascemos e morremos; entre o princípio e o fim, vivemos ou duramos. É assim, é óbvio que é assim. Mas aquela (óbvia) diferença entre viver e durar tem que se lhe diga – e é crucial lembrarmo-nos disso, em cada esquina funcionária, em cada lapso caminhante, em cada fôlego horário. Aqui entre nós: ainda agora telefonei à minha Mãe, só para ter, por minutos, a graça da sua voz. Dispensável, direis. Talvez; mas imaginai que sabíeis do iminente desaparecimento do Sol. Ficaríeis o dia todo fechados em casa, sem dele recolher quanto pudésseis em luz e temperatura?
3. Tenho um amigo que, de quando em vez, me telefona das ruas onde eu gostaria de estar. Não sinto inveja, juro; ao contrário, experimento a gratidão por me ser concedido esse bónus de mundo ao meu quotidiano migrante. E, enfim, por ter camaradas capazes de tamanha generosidade. Que faço, pois, quando toca o telefone? Aproveito, como é óbvio.
4. Um amigo é um tesouro. De tão repetida, a evidência pode devir clichê, sei-o bem, mas dizer o óbvio é, também aqui, justificável e justo. Eu falo muitas vezes do meu amor por família e amigos. Habituei-me a ouvir que aquela não se escolhe e que estes, sim. Creio que tendemos, em geral, a considerar família as avulsas pessoas por quem temos afeição, e a preferir, na tribo familiar, os que, para além da fatalidade sanguínea, são merecedores da nossa amizade.
5. Há uma oncologia comum que mata frequentemente a amizade: é a zanga, depois ressentimento, depois ódio irracional. Não poucas vezes, tudo começa numa divergência fútil, caprichosa, despicienda. Com o tempo, o veneno tumoral pode matar o vínculo afectivo. Eu conheço muitos exemplos de gente que se especializou no ódio, porém esquecida, já, do motivo que a trouxe a esse afastamento radical. Não valeria a pena trocar tanta raiva por um abraço e, em concomitância, pela possibilidade de dar nova vida à amizade interrompida? Parece-me tão óbvio que sim.
6. Estava já a crónica feita, e a boca voraz, traiçoeira e cínica do Fogo veio a Portugal por mais alimento, somando às mortes e à destruição anteriores a destruição e as mortes de agora. Logo regressaram também os tudólogos da pátria, apontando culpados, expelindo (entre vaidade & baba) as medidas certas a tomar, regurgitando (entre baba & vaidade) as medidas erradas que se tomaram. Ainda bem que, na madrugada do dia 17, ouvi finalmente a chuva e pude, enfim, juntar o meu suspiro grato ao suspiro do próprio chão saudoso de frescura. É tempo de chorar os mortos e de ajudar os vivos que perderam tanto. Mas também de nos livrarmos dos fogos da má-língua e da politiquice mais rasteira – e de, serenamente-sensatamente-responsavelmente, preparar o País para os problemas a haver. Também isto, amáveis leitores, me parece óbvio.

Vila Real, 15 de Outubro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na maravilhosa BD Calvin & Hobbes, de Bill Watterson.]

2 comentários:

Anónimo disse...

Sobre o ponto três - Não consigo deixar de partilhar a satisfação, a felicidade, e tantas outras boas emoções que senti cada vez que o meu pai telefonava do meu país natal e eu lhe pedia, simplesmente, "manda-me um beijinho daí". Era tudo... o meu pai, o meu país e um carinho imenso.
Obrigada.
RGC

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Querida Amiga, gostei muito do teu comentário, que só agora vi. Ocorreu-me a ideia (literal e poética) de que o nosso Pai (como a nossa Mãe) é (são) também o nosso País. Beijinho cúmplice. JJC